Letras

lá em casa havia uma empregada
havia várias, de fato, mas essa em especial
secretamente, ela tomava o leite da mamadeira de minha irmã bebê
e brincava com a metralhadora de meu pai
não, não morávamos numa mansão dos Hamptons
nem ela era uma negra de _______ praticante do hoodoo
mas o enganchamento de seu cristianismo místico meio sexualmente perverso com a culpa de minha mãe:
produzia esse estranho embate em dimensões inesperadas
minha mãe era a rainha, mas não era
minha mãe era a rainha, e não era
meu pai havia trazido a metralhadora de seus tempos na Guerra da Cassiterita
e a jovem, de origem humilde porém energeticamente poderosa
foi se instalando nesses hiatos apenas pressentidos
que toda a família tem
de dentro de seu uniformezinho branco
ela começou a imaginar que comandava a casa
e, de algum modo, de fato começou a fazê-lo
minha mãe tinha apagões de consciência
durante horas ficava inerte
esses apagões datavam de quando meu pai esteve na guerra da Amazônia
e lá teve que matar gente
lá teve que matar gente (o que desconfio que ele fez com um certo gosto)
a jovem era encarregada de apenas observar
e garantir que nada de mais grave acontecesse
nem a mim, o príncipe de coisa nenhuma, nem à minha irmã, recém-nascida princesa
minha mãe não tinha leite
e a jovem, quando um apagão coincidia com a hora de amamentar, ao invés de fazer o esperado, dava o seio à minha irmã, e tomava ela mesma a mamadeira
minha mãe voltava inquieta dos apagões
(minha mãe sempre voltava inquieta dos apagões, mas agora era como se o perigo inexplicável que ela tanto temia
(mas agora era como se o perigo inexplicável estivesse mais próximo)
a jovem também começou a fazer uma brincadeira que achava excitante, suponho, que consistia em apagar a luz e se despir, quando só estávamos nós dois
ela não me tocava nem nada
mas aparentemente se comprazia em estar nua num mesmo aposento com alguém do sexo masculino, mesmo que fosse apenas um rapazinho desavisado
e esse rapazinho desavisado, com esse estranho input de poder estranho
se converteu em quem eu sou
Written by: Alex Antunes
instagramSharePathic_arrow_out